ALÉM-MUNDO PLENO DE MUNDOS2024
Exhibition view, Além-mundo pleno de mundos, solo exhibition, curated by Susana Ventura and Pedro Bandeira, in O INSTITUTO, Porto
EXHIBITION
Text by Susana Ventura
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Além-mundo pleno de mundos sugere, de imediato, a cada sujeito-observador uma multiplicidade de mundos coalescente na obra de arte. No entanto, teremos de recuar bastante para compreender o espectro total destes mundos, que estão contidos na obra de Rafaela Lima, quando esta reactiva um problema remontante ao início da modernidade e à consequente alteração epistemológica da visão.
A camara obscura serviu, simultaneamente, de modelo e de metáfora para descrever as relações entre o observador e a realidade durante séculos, em que a observação resultante proporcionava extrair do mundo conclusões válidas e tidas como verdadeiras. O corpo e a sua subjectividade (aquela produzida pela experiência empírica), contudo, estavam ausentes da equação. Com Goethe e no decorrer das experiências para uma teoria das cores, “o corpo, com as suas contingências e especificidades, transformou-se no produtor activo da experiência óptica”, segundo Jonathan Crary. Para além das condições fisiológicas e anatómicas de cada sujeito, os próprios processos associados à subjectividade da experiência de observação, em que ambas as condições exigem um desdobramento temporal, interferem e modelam a percepção e a cognição. Em vez de uma continuidade ordenada de sensações estáveis — como Locke ou Condillac definiam — a observação implica um jogo e uma interacção de forças entre diferentes relações, tanto espaciais, como temporais, dependentes, como propôs Maine de Biran, de uma aglutinação de passado e presente. Ou ainda, como definiu o físico André-Marie Ampère: qualquer percepção funda-se com uma percepção anterior ou rememorada. Este pequeno desvio pela cisão ocorrida na modernidade sobre a observação é essencial para se compreenderem as várias aproximações da artista a esta experiência. A sua obra tem, precisamente, início numa percepção, que a artista nunca experienciou, resultante da observação da superfície terrestre a partir da altitude obtida durante uma viagem de avião. A inexistência desta percepção e do conhecimento por esta gerado no corpo conduzem a artista a accionar a imaginação e, mais relevantemente, a fabricar o desdobramento no tempo, que a experiência exige, para depois, afinal, confundir os dois próprios sistemas, o da percepção e o da cognição, através desse outro, que é o da fruição estética (como é evidente na obra Exercício de voo n.o 1, 2023, e na qual, curiosamente, o modelo de avião foi moldado a partir desse passado virtual, como Bergson o define, que vai acumulando imagens nunca concretizadas, efectivando-se numa escultura que se pode dizer de um avião comum ou de todos os aviões existentes no mundo). Um enorme desafio que a artista ultrapassa trabalhando de forma sistemática sobre as diferentes grandezas e ordens — do infinitamente menor ao infinitamente maior, do verossímil ao abstracto —, porque se trata essencialmente da nossa relação com o mundo e com o universo, que continuamos a medir, independentemente dos instrumentos ópticos inventados, a partir do nosso corpo. Segundo Jonathan Crary, as alterações introduzidas pela invenção de determinados dispositivos ópticos são, sobretudo, consequência daquelas ocorridas no sujeito no seguimento da descoberta da visão subjectiva e do abandono do modelo estático da camera obscura (a ligação desta com a fotografia será, apenas, uma ilusão romântica perpetuada por alguns teóricos e acentuada pela ideia errónea que a fotografia é uma intermediária transparente entre observador e mundo). A invenção de determinados instrumentos ópticos dependeu mais das alterações dos regimes de visão e, consequentemente, de um novo tipo de observador, do que de avanços tecnológicos. Por outro lado, Pedro Miguel Frade, no seu livro seminal sobre cultura fotográfica, revela o choque perceptivo causado pela experiência de observação através de um microscópio ou de um telescópio e com esta o entendimento do mundo que se revelava. “Este último [o telescópio]” — refere o autor — “permitindo uma consideração (ou uma consideratio, se se preferir sublinhar as etimologias oraculares deste termo) mais aproximada do infinitamente grande, revelava-o como um além-mundo pleno de mundos; aquele, voltado para baixo, revelava as nossas proximidades mais imediatas como um outro mundo fervilhante de vida, fascinantemente repleto de maravilhas, cujas dimensões reduzidas em nada diminuíram, antes pelo contrário sublinhavam o carácter admirável da sua perfeição”.
Como se imagina a experienciar uma viagem de avião e a olhar pela janela a abstracta matriz irregular que cobre o mundo, concentrando-se nas incisões e nas marcas incrustadas nas pistas de avião, a artista apodera-se, igualmente, da sensação de maravilhamento que só uma experiência iniciática e genuína pode proporcionar, transportando-a para o exercício plástico, descobrindo nas sucessivas ampliações de imagens fotográficas, rastreadas por conta fios, esse além-mundo pleno de mundos, ou as ambiguidades, precisamente, ao nível das formas, que esse exercício de ampliação produz. Existe, inevitavelmente, um abandono do referente e, mais especificamente, desse mundo fixo e estável (duplamente eliminado pela camera obscura e pela viagem de avião) a favor da criação de uma imagem abstracta que, no desdobramento temporal e espacial, sob a acção do movimento e da luz (aquela responsável por doar dimensão ao tempo e espessura ao espaço — o espaço, se recordarmos a proposta kantiana, é senão uma descoberta possível pela existência do tempo), perpetua a natureza alucinatória e fantasmática da imagem, reforçada pela repetição de linhas ou pelo pontilhado subtil que deixa perpassar a luz (como nas obras Ensaios sobre escalas, 2022). O próprio exercício de ampliação sucessiva de fotografias aéreas remove a possibilidade de estabelecermos relações de proporção com o nosso corpo (o que as mãos na fotografia, em exposição no plano do chão, ambiguamente acentua), parodiando o nosso entendimento do mundo senão para despertar esse poder da imaginação. Não será por acaso que uma das referências para a artista seja o projecto The Great Unreal, dos artistas Taiyo Onorato e Nico Krebs, embora se afaste das técnicas de construção e manipulação destes, criando, a nosso ver, uma experiência mais avassaladora devido à ambiguidade das estruturas formais que concebe, em detrimento de uma colagem que reforça o poder fictício. A fantasmagoria resulta menos da ocultação da produção a favor de uma narrativa fictícia construída a partir de elementos reais, mas acima de tudo da experiência óptica exigida, utilizando muito subtilmente a persistência e a mutação das imagens através de vários estados, do positivo ao negativo, da penumbra à luz...
A obra de Rafaela Lima recupera, desta forma, a ilusão enigmática que as imagens ainda podem criar, um potencial que advém da própria estrutura da imagem e da experiência que esta desdobra no nosso corpo, o que um outro choque, causado pelo excesso obtuso de imagens, tem obliterado, inscrevendo-se — arriscamos — numa nova e urgente alteração dos regimes de visão.